O que acontece se a vítima morrer durante o processo criminal?

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A vítima morreu! Existe alguma consequência?

“A morte da vítima haverá influência – ou não – a depender do crime e, consequentemente, do tipo de ação penal que levará ao seu processamento.

Se o delito for de Ação Penal Pública Incondicionada, a morte da vítima é um fato completamente irrelevante para o início e prosseguimento da Ação Penal. Friso, estou falando em questões de procedibilidade, sem entrar no mérito em relação as questões probatórias, tais como o seu depoimento em juízo.

O que vou dizer é uma obviedade, mas essa absoluta indiferença da vítima para as questões procedimentais se justifica nos casos de crimes com resultado morte. Ora, como exigir qualquer comportamento da vítima de um crime de homicídio consumado ou de um latrocínio consumado? Haveria uma completa inviabilização prática da persecução penal e, por conseguinte, do processo e julgamento do suspeito. Como afirmei, eu sei que é algo óbvio para a grande maioria dos leitores, mas prefiro pecar pelo excesso de detalhes do que pela sua falta.

Sendo assim, para fins de prosseguimento de uma ação penal, é completamente irrelevante se Joãozinho foi vítima de um homicídio tentado ou de um homicídio consumado. Tanto faz, pois a ação prosseguirá de qualquer forma e independente da vontade – se ainda lhe for possível exprimi-la – de Joãozinho.

Situação um pouco distinta ocorre no caso da Ação Penal Pública Condicionada à Representação, tais como nos crimes de Ameaça (art. 147) e Estelionato (art. 171), ambos do Código Penal.

Se determinada vítima representar contra o suspeito do crime de estelionato ANTES de morrer, o Ministério Público poderá dar prosseguimento à ação penal normalmente.

Entretanto, se a vítima vier a falecer SEM ANTES oferecer a representação, o Ministério Público não poderá, de plano, oferecer denúncia. Neste caso, deverá aguardar que o direito de representação seja exercido pelo cônjuge, ascendente, descendente ou irmão, nos termos do artigo 24 § 1º do CPP:

§ 1º No caso de morte do ofendido ou quando declarado ausente por decisão judicial, o direito de representação passará ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão.

É sempre bom relembrar que o Direito de Representação possui prazo decadencial de 06 meses, contados da data da ciência de quem é o autor do crime, nos termos do artigo 38 do Código de Processo Penal e 103 do Código Penal.

Isto posto, vamos falar agora sobre a Ação Penal de Iniciativa Privada, que dada as suas particularidades, exige certa atenção.

Como bem sabemos, a Ação Penal de Iniciativa Privada se procede mediante queixa-crime, cabendo ao ofendido promover e buscar a responsabilização criminal do ofensor.

Sendo assim, surgem duas situações:

1ª Situação: Se a vítima NÃO ofereceu a Queixa-Crime e falece:

Neste caso, deverá ser aplicada a regra do art. 31 do Código de Processo Penal, possibilitando que o C.A.D.I (cônjuge, ascendente, descendente ou irmão) ofereçam a inicial acusatória.

Art. 31. No caso de morte do ofendido ou quando declarado ausente por decisão judicial, o direito de oferecer queixa ou prosseguir na ação passará ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão.

2ª Situação: Se a vítima JÁ ofereceu a Queixa-Crime e falece:

Nesta hipótese, também é aplicada do artigo 31 do Código de Processo Penal, permitindo que os legitimados prossigam com a ação de iniciativa privada.

Todavia, esse outro contexto merece uma especial atenção em relação à possibilidade de ocorrência de perempção, prevista no art. 60II, do CPP:

Art. 60. Nos casos em que somente se procede mediante queixa, considerar-se-á perempta a ação penal:

II – quando, falecendo o querelante, ou sobrevindo sua incapacidade, não comparecer em juízo, para prosseguir no processo, dentro do prazo de 60 (sessenta) dias, qualquer das pessoas a quem couber fazê-lo, ressalvado o disposto no art. 36;

Diante disso, se durante o trâmite de uma Queixa-Crime, sobrevier a morte do ofendido, e pela inércia de seus familiares, operar-se a perempção, a inevitável consequência será a extinção da punibilidade, nos termos do art. 107IV, do Código Penal:

Art. 107 – Extingue-se a punibilidade:

IV – pela prescrição, decadência ou perempção;

Dúvidas Comuns:

E se estivermos diante de uma Ação Penal Privada Subsidiária da Pública?

Neste caso, o Ministério Público poderá retomar a sua titularidade a qualquer tempo, nos termos do artigo 29 do CPP.

E se a Ação Penal de Iniciativa Privada for PERSONALÍSSIMA?

A única possibilidade do ordenamento jurídico pátrio de Ação Penal de Iniciativa Privada Personalíssima reside no crime do artigo 236 do Código Penal:

Art. 236 – Contrair casamento, induzindo em erro essencial o outro contraente, ou ocultando-lhe impedimento que não seja casamento anterior:

Pena – detenção, de seis meses a dois anos.

Parágrafo único – A ação penal depende de queixa do contraente enganado e não pode ser intentada senão depois de transitar em julgado a sentença que, por motivo de erro ou impedimento, anule o casamento.

Neste caso, caso o ofendido venha a falecer, por se tratar de uma ação personalíssima, haverá a extinção da punibilidade do réu.

É possível ampliar o rol dos legitimados do § 1º do art. 24 e do art. 31, ambos do CPP, para incluir o/a companheiro (a) quando a relação for de União Estável?

Duas correntes tentam responder a esse questionamento.

Para a 1ª corrente, minoritária, não seria possível ampliar o rol, pois resultaria em um prejuízo ao réu, através de uma analogia maléfica.

Já para a 2ª corrente, majoritária, o artigo deve ser interpretado de forma extensiva, conforme os ditames constitucionais da Carta da Republica de 1988. Inclusive, é essa a posição adotada pelos Tribunais Superiores, vide APn 912-RJ, Rel. Min. Laurita Vaz, Corte Especial, por unanimidade, julgado em 07/08/2019, DJe 22/08/2019.

A companheira, em união estável homoafetiva reconhecida, goza do mesmo status de cônjuge para o processo penal, possuindo legitimidade para ajuizar a ação penal privada. No caso, trata-se de crime de calúnia contra pessoa morta, o que aponta que os querelantes mãe, pai, irmã e companheira em união estável da vítima falecida são partes legítimas para ajuizar a ação penal privada, nos termos do art. 24§ 1º, do CPP. Cumpre anotar que a companheira, em união estável reconhecida, goza do mesmo status de cônjuge para o processo penal, podendo figurar como legítima representante da falecida. Vale ressaltar que a interpretação extensiva da norma processual penal tem autorização expressa do art.  do CPP (“a lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito”). Ademais, o STF, ao apreciar o tema 498 da repercussão geral, reconheceu a “inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico, aplicando-se à união estável entre pessoas do mesmo sexo as mesmas regras e mesmas consequências da união estável heteroafetiva” ( RE 646.721, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. Acd. Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 10/05/2017, DJe 11/09/2017).”

Por: Ygor Alexandro Sampaio

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1 thought on “O que acontece se a vítima morrer durante o processo criminal?”

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